Quero andar por aqui até aos 100 anos, dizía-me o Rafael! Muito embora, nos últimos anos, quando falávamos ao telefone, ele me fosse dizendo que se sentia um cadáver adiado. Não sei se ele se sentia doente, ou sabia da gravidade da doença que o ia consumindo aos poucos. Há alguns meses atrás, ele foi internado no Hospital da Forças Armadas e pensei que os médicos teriam decidido operá-lo para remoção da próstata. Mas não foi assim que se passou, deram-lhe alta e mandaram-no para casa.
Para mim isso foi uma boa notícia, é porque a situação não era tão grave como se temia e com a medicação certa poderia ser resolvida. Telefonei-lhe, nessa altura, perguntando qual a razão que o tinha levado ao hospital. Ele foi meio evasivo e percebo agora porquê, passaram cerca de 3 meses sobre essa nossa conversa e, ontem, recebi a notícia do seu falecimento.
O Rafael foi meu camarada na CF2, em Moçambique, de Novembro de 1962 a Abril de 1965. Fazia parte do pelotão que foi enviado para o Niassa, quando rebentou o terrorismo, em Setembro de 1964, tal como eu e ali passámos 4 meses, regressando ao sul de Moçambique, em Janeiro de 1965. Vivemos ali algumas aventuras em conjunto e a nossa amizade estreitou-se um pouco mais.
Depois regressámos à Metrópole, fizemos o Curso de 1º Grau, na Escola de Fuzileiros, e cada um de nós seguiu um destino diferente a partir daí. Eu voluntariei-me para a CF8 que estava de partida para Moçambique. Não quis esperar mais, pois sabia que a próxima Companhia de Fuzileiros seguiria para a Guiné e eu não estava nada interessado em viver essa experiência.
Foi esse o destino do Rafael, tal como o Verde, o Fragata, o Alves, o Rego e outros filhos da nossa escola. Depois do meu regresso de Moçambique, eu saí da Marinha e tive que fazer das tripas coração para singrar numa profissão que tive que construir a partir dos meus 25 anos de idade e garanto que não foi nada fácil. Pelo contrário o Rafael continuou na Marinha, depois da Guiné foi para Angola e pouco tempo depois já era sargento.
Vivia-se o tempo do PREC e quem não era "comuna" viu-se um pouco atrapalhado para seguir em frente. Com mais ou menos engulhos o Rafael foi andando de Unidade em Unidade, quase sempre no Batalhão de Instrução. Acabada a Guerra Colonial e com a redução drástica do pessoal tornou-se a situação ainda mais difícil. Havia muitos sargentos e oficiais e cada vez menos praças, mas ele conseguiu sobreviver até à idade da reforma, no posto de Sargento-Mor.
Passaram-se muitos anos sem o ver e só em 2002 o reencontrei num convívio do nosso recrutamento, organizado por 3 camaradas que foram recrutas na Escola de Alunos, em Vila Franca de Xira. A partir daí fui-me encontrando com ele regularmente, em especial depois de eu ter passado a organizar o tal convívio anual, mas só para fuzileiros.
Ele foi muito amigo do Marlon, aquele camarada que desertou da Escola de Fuzileiros, em 1965, e ajudou-me a encontrá-lo, quando eu cismei que tinha que descobrir o que se passara com ele, se era morto ou vivo. Casualmente, ele tomou conhecimento que vivia em Alcobaça, cidade onde o Rafael tinha comprado uma casa para fugir ao bulício de Almada, um sobrinho do Marlon, filho de uma irmã que vivia ainda na sua terra natal, região de Fozcoa.
Como o Marlon foi considerado desertor e nunca mais se apresentou cá para regularizar a sua situação militar, a família tinha receio de me dizer onde ele vivia. Com algum esforço lá lhe conseguimos sacar a informação e o Rafael e eu pusemo-nos a caminho da Galiza para nos encontramos com ele. Este tipo de coisas fez-me ficar mais próximo ainda do Rafael.
Até ontem, dia 9 de Junho, em que ele recebeu a Guia de Marcha para se apresentar ao S. Pedro e eu fiquei para trás, á espera de ser também destacado para outra situação que será quando Deus quiser!
Descansa em paz, Rafael, as dores terrenas não te apoquentarão mais!!!