terça-feira, 8 de setembro de 2020

Lembranças d'outrora!

 


Hoje, esbarrei nesta foto de 1963 e fiquei a pensar como é bom reconhecermos as caras dos amigos e saber algum pormenor da sua história passada ou presente. A foto faz parte do álbum de recordações do Rafael, o primeiro à esquerda, em pé, e por ele vou começar.

Rafael - Não era do meu pelotão da recruta, mas, uma vez por outra, juntávamos-nos nas aulas práticas, de infantaria, educação física e outras. Um certo dia, o professor de boxe, Ferraz de seu nome, escolheu-o para meu adversário numa das suas aulas. Eu tinha pouco jeito para o boxe, ele ainda menos, corria à minha volta mexendo os braços como uma ventoinha tentando acertar-me na cara. Uma autêntica paródia, o Ferraz vinha ensinar-lhe como colocar os braços, com os cotovelos a proteger o estômago e as luvas a cara, mas mal o largava lá ia ele feito ventoinha. Foi comigo para Moçambique, em 1962, e depois para o Niassa provar um pouco da guerra da Frelimo, em Setembro de 1964. Mais tarde eu vim-me embora para a vida civil e ele continuou a carreira na Marinha e é, hoje, um respeitável Sargento-Mor reformado. Com os nossos convívios e o telefone vamos-nos mantendo em contacto.

Alturas - Ao lado do Rafael está o Joaquim Carvalho, por alcunha o Alturas, por causa dos seus cento e noventa e tal centímetros da dita. O seu número de matrícula era imediatamente abaixo do meu e por isso andámos sempre lado a lado, na formatura, na caserna, na mesa do refeitório, etc.. Eu fiz duas comissões em Moçambique e ele não me largou, foi sempre atrás de mim. Era era muito amigo do Manel Enteiriço e eu também, pelo que vivemos umas quantas aventuras em conjunto. Eles os dois seguiram a carreira militar e ambos chegaram ao posto de sargento. Eu saí e só voltei a encontrá-los nos convívios que comecei a organizar, em 2008.

Bustos - Seguindo sempre para a direita, temos o Bustos que usava o nome da sua terra como alcunha, pois o seu nome verdadeiro era (e ainda é, suponho eu) Lino Santos. Não éramos muito chegados, tínhamos interesses divergentes, eu passava o meu tempo a correr atrás das gajas, enquanto ele só corria atrás da bola. Chegou a jogar num dos grandes clubes de Lourenço Marques, nos anos de 1963/1964. Perdi-lhe o rasto até ao nosso convívio de 2008, na Serra D'Aire.

João Silva - Custou-me a reconhecê-lo na fotografia, não me lembro de grande coisa da sua vida na CF2 e o que sei fora dela foi ele que me contou nos inúmeros telefonemas que fiz para o tentar convencer a participar nos convívios, o que nunca consegui. Contou-me que veio embora mais cedo que o resto da Companhia (com a velha desculpa de estar doente) e que depois desertou por não o deixarem concorrer a enfermeiro que era o seu sonho. Andou fugido, esteve preso, mas depois acabou por entrar e completar o Curso de Enfermagem. Não seguiu a vida militar, talvez por ter incorrido, como eu, no Artigo 62, e se não estou em erro, nunca exerceu Enfermagem na vida civil.

Monteiro (Joaquim) - Nasceu num concelho do interior beirão, Almeida, que vive mais em função de Espanha que de Portugal. Por causa da sua maneira característica de pronunciar os "S", ganhou a alcunha de Xexenta e Xinco (que era o seu número de matrícula). Havia mais um filho da sua terra na CF2, o Sargento Enfermeiro Monteiro (curioso, mesma terra e mesmo apelido, deviam ser todos primos naquele cantinho de Portugal). Para não atraiçoar o seu passado, foi sempre agricultor e vive naquela zona entre Azeitão e Setúbal, onde se cultiva um vinho especial que faz animar a malta. É um ferrenho adepto do PCP e não há Festa do Avante sem ele. Pensei nele várias vezes na passada semana.

Sérgio Rego - Ao lado do Monteiro está o Rego, amigo e quase conterrâneo do Rafael, ambos transmontanos da zona de Vila Flor. Ambos foram para a Guiné depois de regressarem de Moçambique e também ambos seguiram a carreira da Marinha e se cruzaram muitas vezes, ainda hoje são vizinhos, na margem sul do Tejo. O Rego tirou a carta de condução na Guiné e fez disso a sua profissão, a partir dessa altura. Acho que não me engano se disser que ele explorou uma Escola de Condução nas horas vagas que a Marinha lhe deixava. Arranjou uma namorada guineense e por lá fez várias comissões para se não separar dela. Depois de passada essa "doença", casou-se e descasou-se várias vezes e transformou a sua vida num inferno por causa disso. Agora já não deve pensar nisso, pois a saúde é pouca e vai-se arrastando, a caminho do cemitério, consumido por um cancro na próstata que não lhe dá descanso.

Ai'Cone - Em dialecto Xangana (ou Landim, como nós dizíamos) esta palavra significa "Não" e era a o que mais ouvíamos, quando tentávamos encontrar parceira para aliviar o "stress". Ele achou-lhe piada e passou a vida a repeti-la, de tal modo que lhe ficou de alcunha. De nome ele era o mais pobre de toda a Companhia, tinha dois nomes próprios, Manuel Joaquim, e nenhum apelido. Costumava dizer que era tão pobre que nem apelido tinha, mas usava o de Raimundo que, segundo ele, o seu pai também usava (sem ser seu). Pois, o Raimundo ficou sobejamente conhecido por ter levado um tiro de G3 numa coxa, disparado por um camarada que estava de sentinela com ele e se pôs a mexer no gatilho, esquecendo os cuidados que é preciso ter nessas ocasiões. No nosso convívio de 2011, na Mealhada, consegui juntar os dois à mesa para fazerem as pazes e arrumar o assunto definitivamente. Havia quem temesse que ele pudesse fazer uma cena, mas correu tudo pelo melhor. Grande negociante de móveis, na zona de Tomar, também ele anda preocupado com a sua próstata que não o deixa dormir descansado.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O «Velho» Gomes!

O Gomes e eu fomos para Moçambique, no último trimestre de 1962, eu tinha apenas 18 anos e ele (pelo menos) o dobro da minha idade. O barrigudo Marinheiro Manobra, alentejano da Amareleja, já não tinha muito cabelo e talvez me parecesse mais velho do que aquilo que era na realidade. Mais ano, menos ano, deve andar na casa dos 95, uma bonita idade para qualquer cristão que se preze.
Sabia que ele estava internado num Lar de Terceira Idade, no Barreiro, mas não sabia qual. Ontem dei-me ao trabalho de tirar as coisas a limpo, liguei para o Lar de S. José - que tem aparecido nas notícias por lá terem morrido 4 utentes infectados com o novo vírus - e perguntei se me sabiam dar notícias dele. Disseram-me que não estava ali, mas sim noutra dependência da Santa Casa da Misericórdia e que podiam transferir a chamada para lá.
Uns minutos depois ouvi a voz de alguém que disse:
- Estou, quem fala?
Eu não sabia, mas era o próprio Gomes, a quem tinham posto ao telefone, a pedido da Recepção. Surdo como uma porta, além do Alzheimer que o aflige, desde há alguns anos, foi impossível entendermos-nos. Eu falava, mas ele não ouvia e acabou por passar o telefone a alguém que estava ao seu lado e que me deu todas as informações que eu pretendia.
Fiquei contente por saber que ele vai vivendo a sua vida relativamente bem, come pela sua mão e trata da sua higiene sem ajuda de ninguém. Ele tinha casado, em segundas núpcias, com uma mulher mais nova que ele, mas já ficou viúvo de novo. Resta-lhe apenas o filho que é Sargento Enfermeiro Reformado da Marinha e o visita com muita regularidade.
Ele era o segundo mais velho da nossa Companhia, o primeiro era Sargento Parreira que já morreu, há dois ou três anos, e agora ficou como Nº 1 na fila de embarque para o outro lado. Mas nem sempre é o Nº 1 o primeiro a embarcar.
Longa (e boa) vida, camarada Gomes!