E já foi no ano passado, mas agora eu tive conhecimento.
O João Camarada tem uma história que vale a pena contar. A sua vida como fuzileiro não me merece nenhuma apreciação, favorável ou desfavorável, o que já não acontece como homem, como desportista ou como amigo.
Ele fez, como eu, parte da CF2, a primeira Companhia de Fuzileiros a pisar terras moçambicanas. Aos bochechos, desde o início de Outubro até ao fim de Novembro do ano da graça de 1962, os cerca de 150 homens da Companhia foram chegando transportados em aviões da FAP. Foram 4 aviões Dakota carregados de homens e material, eu segui no terceiro voo que foi o mais atribulado de todos. O motor começou a engasgar-se no troço entre Bissau e Luanda e ali chegado foi desmontado para rectificação. Ficámos à espera, durante longos (e saborosos) 17 dias, na praia da Ilha da Floresta, que o avião ficasse pronto para retomar a viagem.
Não me recordo de o João ter voado comigo, diria que ele já estava no Aquartelamento da Machava, quando lá cheguei, no dia 2 de Novembro. Ele e eu éramos de pelotões diferentes e não me lembro de alguma vez me ter cruzado com ele nos serviços de guarda que fazíamos a cada 3 dias dias e em que se estreitavam os laços de amizade existentes. Horas e horas seguidas de sentinela serviam para partilhar coisas pessoais que fortaleciam a camaradagem.
Em Lourenço Marques era comum os marinheiros engatarem namoradas vindas da África do Sul, durante os períodos de férias. A praia do Miramar ou o Parque de Campismo aí existente facilitavam esses engates. Não sei se o João conheceu assim a sua mulher, mas sei que, a páginas tantas, pediu autorização para gozar uma licença nesse país que faz fronteira com Moçambique. E passou essa licença com uma namorada com quem viria a casar e ter filhos, salvo erro dois rapazes.
Depois de terminada a comissão de serviço da CF2, ele pediu para passar à disponibilidade e foi ter com ela e lá se casaram. Depois da independência de Moçambique, assim como da África do Sul que era uma colónia britânica, o casal achou por bem rumar a Portugal, onde se vivia em liberdade e sem perseguições de qualquer espécie. Mas a vida em Portugal não se mostrou fácil e acabaram por rumar à América como emigrantes.
Uma coisa fez dele um homem famoso, nos Estados Unidos. Muito dedicado ao desporto do Atletismo ele meteu na cabeça atravessar o continente americano, do Atlântico ao Pacífica, em passo de corrida. Apareceu nas notícias várias vezes, como desportista radical, ao longo dos muitos dias que levou a percorrer os 3.000 Kms que separam as duas costas.
Como amigo ele era também especial, não havia quem não gostasse dele. Não se lhe conhecia qualquer inimigo, nem nos fuzileiros ou na vida civil. Era o que se pode dizer, um homem pacífico. Nos convívios que realizei, tentando juntar todos os velhos camaradas da Companhia ele sempre apareceu, nem que fosse apenas para dizer que não podia vir, seja por que razão fosse. Uma das razões, eu sabia, era económica.
Regressado dos Estados Unidos, ele arranjou emprego, em Vila Real de Santo António, como motorista dos barcos de recreio que passeavam os turistas pela foz do Guadiana, ou iam até Espanha comer ou beber algo diferente do que havia do nosso lado. Não ganhava grande coisa e como a mulher não trabalhava, ele andava sempre com os bolsos cheios de ...cotão.
Os filhos, ainda nascidos na África do Sul, não se ambientaram muito bem por cá. Depois de muitas peripécias e dificuldades sem a ajuda dos pais, decidiram regressar à sua terra de origem e procurar lá a sua sorte. E foram eles que sabendo da situação apertada do pai (e da mãe), com a saúde a piorar a cada dia, decidiram levá-los para lá, onde o meu camarada fuzileiro veio a falecer pouco tempo depois!